A DOUTRINA SECRETA E SEU ESTUDO
ROBERT BOWEN
Extratos de notas retirados dos ensinamentos pessoais dados por H.P.B. aos seus discípulos, entre 1888 e 1891, integrados num volume de extensos manuscritos, os quais me foram deixados pelo meu pai, que foi um dos discípulos de H.P.B. – P.G.B. Bowen.
Reimpresso da revista Theosophy in Ireland (II: 1), Janeiro-Março, 1932
Durante a semana passada, H.P.B. mostrou-se especialmente interessada sobre o assunto da Doutrina Secreta. Gostaria de tentar triar tudo e escrevê-lo, de forma segura, em papel, enquanto ainda está fresco na minha mente. Como H.P.B. afirmou, “isso poderia ser útil a alguém, daqui a trinta ou quarenta anos”.
Em primeiro lugar, A Doutrina Secreta é apenas uma parte da Doutrina Esotérica, conhecida pelos membros superiores das Fraternidades Ocultas. No entanto, afirma H.P.B., A Doutrina Secreta apresenta tanto conteúdo quanto aquele que possa vir a ser apreendido pelo Mundo, durante o próximo século. Isto levantou uma questão, que H.P.B. clarificou, da seguinte forma:
O “Mundo” significa o Homem que vive na Natureza Pessoal. Este “Mundo” encontrará, nos dois volumes da Doutrina Secreta, tudo aquilo que a sua máxima compreensão é capaz de apreender, mas não mais do que isso. No entanto, isto não significa que o Discípulo, que não vive no “Mundo”, não possa encontrar neste livro mais do que aquilo que o “Mundo” nele encontra. Toda a forma, mesmo por mais tosca que possa ser, contém, oculta em si, a imagem do seu “criador”. Da mesma forma, a obra de um autor, não importa quão obscura possa ser, contém a imagem oculta do conhecimento do autor.
Assim, concluo que A Doutrina Secreta deve conter tudo aquilo que a própria H.P.B. conhece e muito mais, uma vez que grande parte desta obra provém de homens cujo conhecimento é imensamente mais extenso do que o de H.P.B.
Por outro lado, H.P.B. pretendeu afirmar, sem qualquer dúvida, que outra pessoa pode muito bem encontrar na Doutrina Secreta um conhecimento que a própria H.P.B. não possui. Esta é uma ideia motivadora, pensar que nós podemos encontrar nas palavras de H.P.B. um conhecimento do qual ela própria não tem consciência. De facto, H.P.B. debruçou-se bastante sobre esta ideia. “X” afirmou, depois: “H.P.B. deve estar a perder o seu pulso”, pretendendo dizer, creio eu, que ela estava a perder a confiança no seu próprio conhecimento. No entanto, parece-me que “Y”, “Z” e eu próprio também entendemos melhor aquilo que ela quer dizer. Indubitavelmente, H.P.B. diz-nos que não devemos apegar-nos a ela, como uma autoridade final, nem a qualquer outra pessoa, mas sim dependermos totalmente da expansão das nossas próprias perceções.
(Apontamento feito, mais tarde, sobre o que anteriormente afirmei: eu estava certo – coloquei-lhe diretamente a questão e H.P.B. abanou a cabeça, sorrindo. É gratificante obter o seu sorriso aprovador!) – (Assinado) Robert Bowen.
Por fim, preparámo-nos para que H.P.B. nos dissesse como estudar corretamente A Doutrina Secreta. Escrevo enquanto tudo ainda está muito fresco na minha mente.
Ler A Doutrina Secreta, página a página, como se lê um outro livro qualquer – afirma H.P.B. – apenas trará confusão. A primeira coisa a pôr em prática, ainda que isso requeira anos, é reter algo das “Três Proposições Fundamentais”, formuladas no Proémio. Fazei seguir esse estudo da Recapitulação – os itens numerados no Resumo do Volume I (Primeira Parte). Depois, leiam-se as Notas Preliminares (Volume II) e a Conclusão (final do Volume II).
H.P.B. parece muito segura da importância do ensino (na Conclusão), relativo aos momentos do surgimento das Raças e das Sub-Raças. Afirma, de uma maneira mais simples do que é usual, que, na realidade, nada existe como uma futura ‘vinda’ de raças. “Não há nem ‘vinda’, nem ‘desaparecimento’, mas sim eterna ‘transformação’”, afirma H.P.B. A Quarta Raça-Raiz ainda existe. Assim como a Terceira, a Segunda e a Primeira também ainda existem, no sentido de que as suas manifestações estão presentes no nosso atual plano de substância. Penso saber o que ela quer dizer, mas está para lá da minha capacidade exprimi-lo, através de palavras. Até mesmo a Sexta Sub-Raça está aqui, tal como a Sexta e a Sétima Raças-Raiz, e mesmo os seres das Rondas que surgirão. Além do mais, é compreensível. Os Discípulos, os Irmãos e os Adeptos não podem ser gente da vulgar Quinta Sub-Raça, porque a Raça é um estado de evolução.
Mas H.P.B. não deixou qualquer dúvida, no que diz respeito à humanidade no seu todo, sobre as centenas de anos (no tempo e no espaço) que nos separam até mesmo da Sexta Sub-Raça. Pareceu-me que H.P.B. expressava uma ansiedade peculiar, na sua insistência sobre este ponto. Aludia aos “perigos e ilusões” advindos da ideia de que a Nova Raça se tinha iniciado no mundo, de forma definitiva. Segundo H.P.B., a duração duma Sub-Raça para a humanidade, no seu conjunto, coincide com a do Ano Sideral (o círculo descrito pelo eixo da Terra – cerca de 25.000 anos). Isso coloca bem longe o surgimento da nova raça.
Durante as três últimas semanas, temos tido sessões notáveis sobre o estudo da Doutrina Secreta. Preciso apontar as minhas notas e escrevê-las, de forma segura, sem correr o risco de as perder.
H.P.B. tem conversado bastante sobre o “Princípio Fundamental”. Afirma: “Se se imagina poder obter da Doutrina Secreta um quadro completo, sobre a constituição do Universo, do seu estudo apenas surgirá confusão. Não se espera que A Doutrina Secreta dê um veredito definitivo sobre a existência, mas sim conduzir à verdade”. H.P.B. repetiu esta expressão em várias outras ocasiões.
H.P.B. afirma que é pior do que inútil procurar aqueles que se imagina serem estudantes avançados e pedir-lhes que nos deem uma ‘interpretação’ da Doutrina Secreta. Eles não o podem fazer. Se tentam fazê-lo, tudo o que dão são exposições exotéricas fragmentadas, as quais, nem remotamente, se assemelham à Verdade. Aceitar uma tal interpretação significa ancorar-se em ideias rígidas, enquanto a Verdade está para além de qualquer ideia que consigamos formular ou exprimir. As interpretações exotéricas podem ser todas muito boas, e H.P.B. não as condena, na medida em que sejam tomadas como marcos indicadores para os principiantes, e não sejam por eles aceites como mais do que isso. Muitas pessoas que estão na Sociedade Teosófica, ou que possam vir a estar no futuro, são decerto incapazes, potencialmente, de ir além de uma conceção exotérica comum. Mas existem, e existirão outros, que são capazes disso, e é para estas últimas pessoas que H.P.B. aponta a maneira conveniente de aproximação à Doutrina Secreta, que se expõe a seguir.
Aproximem-se da Doutrina Secreta, afirma H.P.B., sem nenhuma esperança de nela obter a Verdade final sobre a existência, ou com qualquer outra ideia que não seja a de ver até onde ela pode conduzir à Verdade. Vejam no estudo um meio de exercitar e de desenvolver a mente, nunca conseguido com outros estudos. Observem as seguintes regras:
“Seja o que for que se possa estudar na Doutrina Secreta, deixai que a mente retenha firmemente, como base da sua ideação, as ideias seguintes:
a) A unidade fundamental de toda a existência. Esta unidade é uma coisa realmente diferente da noção comum de unidade, como quando se diz que uma nação ou um exército estão unidos, ou que este planeta está unido a outro, por linhas de força magnética, ou qualquer coisa semelhante. O ensinamento não é esse. A existência é uma coisa em si mesma e não um conjunto de coisas ligadas entre si. Fundamentalmente, existe um Ser. O Ser tem dois aspetos, um positivo, outro negativo. O positivo é o Espírito ou a Consciência. O negativo é a Substância, o objeto da consciência. Este Ser é o Absoluto, na sua manifestação primária. Sendo absoluto, nada existe fora dele. É Todo-Ser. É indivisível, sem o que não seria absoluto. Se uma parte pudesse ser separada, o que restaria não poderia ser absoluto, porque surgiria logo a questão da comparação entre ele e a parte separada. A comparação é incompatível com a ideia de absoluto. Assim, claro que esta Existência Una fundamental, ou Ser Absoluto, deve ser a Realidade, em toda a forma existente.
Eu afirmei que, se bem que isto fosse claro para mim, não pensava que muitas pessoas, nos Ramos, o compreendessem. H.P.B. respondeu que “a Teosofia é para aqueles que podem pensar, ou para aqueles que podem vir a pensar, não para os preguiçosos mentais”. H.P.B. tornou-se recentemente muito doce. ‘Crânio duro’ era o nome que ela usava para o estudante mediano.
O Átomo, o Homem, Deus, afirma H.P.B., são, cada um, separadamente, bem como todos, coletivamente, o Ser Absoluto, na sua última instância, ou seja a sua Individualidade Real. É esta ideia que é necessário ter sempre no plano de fundo da mente, para formar a base de toda a conceção que possa surgir do estudo da Doutrina Secreta. No momento em que isso for esquecido (e nada é mais fácil, quando se está perante um dos numerosos aspetos complicados da Filosofia Esotérica), sobrevém a ideia de Separação e o estudo perde o seu verdadeiro valor.
b) A segunda ideia que é necessário perceber, de forma segura, é que não há matéria morta. O menor átomo está vivo. Não poderia ser de outra maneira, pois que todo o átomo é, ele próprio, fundamentalmente, o Ser Absoluto. Não há, portanto, tais coisas como ‘espaços’ de Éter ou Akāśa, chamem-lhe como entenderem melhor, onde anjos e elementais nadariam como trutas na água. É uma ideia comum. A ideia verdadeira é que cada átomo de substância, não importa em que plano, é, em si mesmo, uma Vida.
c) A terceira ideia de base a reter é que o Homem é o Microcosmo. Então, como tal, todas as Hierarquias dos Céus existem nele. Mas, na verdade, não existe, nem Macrocosmo, nem Microcosmo, mas sim Uma Existência. Grande e pequeno só são considerados como tal, porque são vistos por uma consciência limitada.
d) A quarta e última ideia de base a reter é a que está expressa no Grande Axioma Hermético. Com efeito, ela resume e sintetiza todas as outras:
O Exterior é como o Interior, o Pequeno é como o Grande; o que está em baixo é como o que está em cima. Não há senão Uma Vida e Uma Lei, e o que a aciona é Um. Nada é Interior, nada é Exterior; nada é Grande, nada é Pequeno; nada é Alto, nada é Baixo, na Economia Divina.
Seja o que for que se assuma como estudo na Doutrina Secreta, é preciso correlacioná-lo com estas ideias de base.”
Sugeri que isto é uma espécie de exercício mental que deve ser excessivamente fatigante. H.P.B. sorriu e aprovou com a cabeça. Não se deve ser insensato, afirma H.P.B., e tomar o caminho do asilo dos alienados, tentando fazer demasiado ao princípio. O cérebro é o instrumento da consciência de vigília, e todo o quadro mental que se forma provoca uma mudança e uma destruição dos átomos cerebrais. A atividade intelectual vulgar segue caminhos já abertos no cérebro e não o obriga a rápidos ajustamentos e a destruições da sua substância. Mas este novo tipo de esforço mental provoca uma coisa muito diferente – abre ‘novos caminhos cerebrais’ e produz uma ordem diferente de disposição das pequenas vias cerebrais. Se tal for feito de forma forçada, inadequadamente, pode provocar-se um sério dano físico ao cérebro.
Este modo de pensar, afirma H.P.B., é aquilo a que os indianos chamam Jnana Yoga. Quando se fazem progressos no Jnana Yoga, surgem conceções que, se bem que se esteja consciente delas, não se conseguem expressar, nem mesmo formular em qualquer imagem mental. À medida que o tempo passa, estas conceções virão, então, a tomar a forma de imagens mentais. É o momento em que é preciso estar bem desperto e não se deixar iludir pela ideia de que a nova e maravilhosa imagem encontrada, representa a realidade. Não é assim. À medida que se trabalha, apercebe-se que a imagem que anteriormente era objeto de admiração, se torna agora baça e não satisfatória, para, por fim, se desvanecer, ou ser rejeitada. Surge, então, um novo momento crítico, porque, durante algum tempo, é-se deixado no vazio, sem nenhuma conceção para se sustentar, podendo bem ser tentado a revivificar a imagem rejeitada, à falta de uma melhor a que se agarrar. Entretanto, o verdadeiro estudante continuará a trabalhar sem ser perturbado e novos vislumbres rapidamente surgirão, os quais, com o tempo, darão origem a uma imagem maior e mais bela do que a precedente. O aprendiz, contudo, saberá agora que nenhum quadro representará jamais a Verdade. Também esta última esplêndida imagem se embaciará e se desvanecerá, como as outras, e o processo continuará, até que, por fim, a mente e as suas imagens sejam transcendidos e o aprendiz penetre, para aí viver, no Mundo Sem Forma, do qual todas as formas são reflexos limitados.
O verdadeiro estudante da Doutrina Secreta é um Jnana Yogi e esta Senda de Yoga é a Senda Verdadeira para o estudante ocidental. Foi para lhe fornecer os marcos indicadores desta Senda que A Doutrina Secreta foi escrita.
(Nota posterior: reli este rascunho do seu ensinamento à própria H.P.B. e perguntei-lhe se o tinha compreendido bem. Tratou-me por ‘crânio duro’ estúpido por imaginar que, seja o que for, possa alguma vez ser expresso corretamente por palavras. No entanto, sorriu e aprovou mesmo, com a cabeça, dizendo-me que, na verdade, eu o tinha compreendido melhor do que até aí tinha acontecido e melhor do que ela própria o teria feito).
Pergunto-me por que escrevi tudo isto. Dever-se-ia transmiti-lo ao mundo, mas sou demasiado velho para o fazer. Sinto-me, de facto, uma criança, em relação a H.P.B., ainda que tenha, em anos concretos, mais vinte anos do que ela.
Ela mudou muito, desde que a conheci, há dois anos. É maravilhoso ver como fez face a uma doença cruel. Para alguém que nada soubesse e em nada acreditasse, H.P.B. transmitiria a convicção de que se tratava de qualquer coisa exterior e para além do corpo e do cérebro. Especialmente desde as últimas conversas, ainda que ela se tenha tornado, do ponto de vista físico, visivelmente enfraquecida, sinto que recebemos ensinamentos provenientes de uma outra e mais alta esfera. Parece sentirmos e Saber o que ela afirma, mais do que ouvi-lo com os nossos ouvidos corporais. Na noite passada, ‘X’ afirmou exatamente o mesmo.
(Assinado) Robert Bowen
19 de Abril de 1891.